sexta-feira, 2 de maio de 2008

Racismo "científico"

Pesquisador condena passado da Faculdade de Medicina, onde discursos eugenistas são historicamente recorrentes

Flávio Novaes
As polêmicas declarações do coordenador do curso de medicina da Ufba, Natalino Dantas, não são novidade para o professor Jefferson Bacelar, do Departamento de Antropologia da instituição. “São práticas eugenistas, sim. Ele (Dantas) retrata o pensamento de um segmento expressivo e conservador da Faculdade de Medicina e de boa parte da sociedade baiana, que aponta a presença do negro como fator que impede o crescimento do estado”, contra-ataca. Na avaliação de Bacelar, a grande questão é que esta corrente de pensamento nunca “engoliu” o sistema de cotas. “Teve um professor, que não vou dizer o nome, que afirmou não saber como o filho dele, que tinha um carro de R$60 mil, ia se sentar ao lado de um negro do subúrbio ferroviário”, relata.
Há pelo menos 120 anos o tema volta ao debate acalorado do dia-a-dia, exalta os ânimos e provoca indignação. Polêmicas como as geradas por Dantas são recorrentes no âmbito da academia, principalmente na primeira e bicentenária faculdade do Brasil, e trazem de volta a discussão sobre eugenia. É o que afirmam pesquisadores, que conhecem a história do prédio que já graduou grandes nomes da medicina nacional.
Não é de hoje que Bacelar, também pesquisador do Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao), vinculado à universidade, tem problemas com professores de medicina. No início dos anos 80, de acordo com o pesquisador, uma batalha _ que envolveu até o Ministério Público _ foi travada para que fossem retiradas peças de candomblés do museu Estácio de Lima. O espaço guardava um acervo médico-legal, com crânios deformados, entre outras peças. “Eles faziam uma analogia entre a religião e aqueles elementos do museu dos horrores, mas conseguimos retirar o material e levamos para o museu Afro”, lembra ele, que, à época, era diretor do Ceao.
Foi justamente o museu Afro-Brasileiro, situado em um dos grandes salões do prédio da Faculdade de Medicina, o motivo de outra grande briga. Segundo Bacelar, durante a sua gestão à frente do Ceao, entre 1997 e 1998, os médicos queriam retirar o espaço do local a qualquer custo, mas não tiveram sucesso. “Na época briguei sozinho, só Vovô do Ilê ficou ao meu lado”, diz. “O fato é que eles sempre tiveram esse pensamento racista, apenas estavam retraídos”, afirma.
Em defesa do seu posicionamento, o professor Natalino Dantas garante que não está sozinho na questão, reforçando o discurso de Bacelar. “Tem muita gente na faculdade contra o que eu disse, mas também tem muita gente a favor”, põe mais lenha na fogueira, sem citar nomes.
Nina Rodrigues - As querelas, porém, são bem mais antigas: remontam ao final do século XIX, quando a faculdade – sempre instalada no Terreiro de Jesus _ convivia com as idéias, hoje polêmicas, do médico legista, professor e etnólogo Raymundo Nina Rodrigues. Precursor da medicina legal no país, Nina Rodrigues, no livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, defendeu a adoção de um sistema penal diferenciado para brancos e mulatos, por acreditar que os descendentes de africanos que viviam na Bahia, recém-libertos da escravidão, formavam uma raça inferior, com pouco contato com a civilização e, por isso, mais afeitos à violência. “Na Faculdade de Medicina de hoje eles ainda têm o mesmo discurso do final do século XIX, o mesmo racismo científico da época”, diz Bacelar. “Só que, naquela época, Nina (Rodrigues) pelo menos foi mais avançado e tinha a preocupação de entender o negro baiano”, completa.
Entrou para a história também a seleção para a cadeira de neuropsiquiatria, em 1896. “Conheço suas tias. São queimadinhas”, ironizou um dos membros da banca examinadora, antes da apresentação dos trabalhos do negro Juliano Moreira. “Há quem se arreceie de que a pigmentação seja nuvem capaz de marear o brilho dessa faculdade. Subir sem outro bordão que não seja a abnegação e o trabalho, eis o que há de mais escabroso. Só o vício, a subserviência e a ignorância tisnam a pasta humana quando a ela se misturam”, discursou Juliano, após receber 15 notas máximas. Depois, publicou mais de cem trabalhos científicos em quatro idiomas (português, alemão, francês e inglês), que serviram de base para diversas áreas médicas, o que lhe rendeu uma vaga na Academia Brasileira de Ciências, em 1917, no lugar de Oswaldo Cruz.
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Movimento negro pede providências à Ufba
Carmen Azevêdo
O movimento negro baiano reivindica que a Ufba adote a postura adequada e dê um basta a atitudes racistas e discriminatórias dentro da instituição. Desde que as declarações depreciativas do professor Natalino Dantas ganharam repercussão nacional, integrantes e lideranças do movimento vêm debatendo o assunto. Eles dizem que alunos afrodescendente, inclusive os que ingressaram na Ufba pelo sistema de cotas, já manifestaram apoio ao movimento negro e prometem pressionar a instituição.
O coordenador nacional do Movimento Negro Unificado (MNU), Marcus Alessandro Mawusí, define como “lamentável” o “conjunto de besteiras” declaradas pelo professor. “E o pior é que ele estava muito à vontade ao dizer tudo aquilo”, dispara. A grande preocupação de Mawusí é saber que as afirmações racistas partiram de um acadêmico que atua em uma universidade pública e gratuita. “Isso revela uma parcela da opinião pública que pensa de forma intolerante e criminosa. Esperamos que a Ufba e o Ministério Público tomem providências”. Mawusí lembra ainda que as declarações relembram as idéias do século XIX, como a teoria eugenista da superioridade ariana (supremacia da raça branca sobre as demais). “O mais perigoso é a retomada destas idéias dentro de uma Faculdade de Medicina”, destaca.
Para o professor Ubiratan Castro, historiador à frente da Fundação Cultural Palmares, as declarações não devem ser vistas como “individuais” nem “surpreendentes”. Castro se diz antigo conhecedor das posturas de Dantas dentro da universidade. “Sempre com estas idéias, apoiadas por pessoas que o elegem dentro da instituição, ele já acusou preconceituosamente os alunos da Faculdade de Filosofia de ‘drogados’ e ‘maconheiros’”. Além disso, diz o historiador, Dantas já exerceu pressão contra o Museu Afro-Brasileiro, instalado no prédio da primeira Escola de Medicina do Brasil, no Terreiro de Jesus, alegando que arte afro não é arte. Para o especialista, o docente sempre foi protegido pelos conservadores da universidade. “A solução é punir exemplarmente, espero que a instituição mostre que não apóia esse tipo de atitude”.

Fonte: Correio da Bahia 02.05.08

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